Luxo Musical

De prazer acessível a item de luxo: por que a música ao vivo está se tornando inacessível?

O que antes era celebração coletiva, hoje se tornou uma experiência elitizada — marcada por planejamento, parcelamento e sacrifício

 

Durante muito tempo, decidir ir a um show era um ato de espontaneidade. Bastava saber que seus artistas favoritos estariam na cidade, reunir os amigos, comprar os ingressos e curtir o momento. Hoje, esse cenário parece cada vez mais distante. Ver sua banda favorita de perto virou um evento raro — que exige preparo financeiro, emocional e, muitas vezes, sorte.

É possível perceber a alta nos preços dos ingressos em escala global. Segundo a BBC, apenas em 2024 houve um aumento de 23%, totalizando quase 50% de valorização desde o início da pandemia. E essa elevação não é exclusividade do exterior — o Brasil também acompanha esse movimento.

No Rock in Rio de 2001, o ingresso custava R$ 35 — cerca de 20% do salário mínimo da época. No ano passado, o valor da entrada inteira saltou para R$ 795, consumindo mais da metade de um salário mínimo. O aumento não acompanha apenas a inflação: supera em quase 400% o acumulado do período.

Em 2024, um ingresso para apenas um dia de Lollapalooza Brasil chegou a custar R$1.320 — o equivalente a um salário mínimo. Já o Primavera Sound São Paulo, mesmo sem divulgar suas atrações e antes de ser cancelado, vendeu ingressos 'early bird' por R$1.200.

E esse acontecimento não se restringe apenas aos megaeventos. A cantora Dua Lipa, por exemplo, teve os preços de seus ingressos em São Paulo aumentados entre 68% e 283% entre 2017 e 2025, a depender do setor.

A era do ingresso parcelado

Com os preços nas alturas, uma nova cultura de consumo ganhou força: o parcelamento tornou-se parte essencial da experiência. No Coachella 2025, cerca de 60% do público optou por dividir o valor dos ingressos. No Brasil, essa prática já é comum — especialmente entre os jovens, que não querem abrir mão de ver seus ídolos no palco. Um exemplo claro disso são os shows de Bruno Mars em 2023: os ingressos para a pista premium custavam até R$1.250 e, mesmo assim, esgotaram rapidamente.

Esse raciocínio se intensifica ainda mais com o uso do valor dinâmico — prática comum em plataformas como a Ticketmaster, no exterior. O preço dos ingressos varia de acordo com a demanda, como acontece ao solicitar um carro por aplicativo. Ou seja, quem demora para comprar pode acabar pagando muito mais. Isso torna o acesso ainda mais instável e desigual.

 

Por que os ingressos estão mais caros?

Os causam mudam bastante, mas entre os principais que se destacam:

  • Demanda elevada após a pandemia 

Após a pausa imposta pela COVID-19, houve uma explosão na demanda por shows e festivais. O público, sedento por experiências ao vivo, impulsionou naturalmente os preços, seguindo a lógica básica da oferta e procura. De acordo com um relatório da Live Nation, 2022 registrou a maior venda global de ingressos da história da empresa — um aumento de mais de 30% em relação a 2019.

  • Inflação e encarecimento nos custos de produção 

Além da demanda aquecida, a inflação e o aumento dos custos de produção também pesam no valor final dos ingressos. Equipamentos, passagens aéreas, hospedagem, alimentação da equipe, segurança e aluguel de espaços — tudo ficou mais caro. Esses custos acabam sendo repassados ao consumidor. Com a alta do dólar, por exemplo, trazer grandes turnês internacionais ao Brasil se torna ainda mais oneroso, e o preço dos ingressos precisa compensar essa diferença cambial

  • Grandes estruturas 

Atualmente, grandes artistas investem em produções cada vez mais elaboradas — com efeitos visuais, pirotecnia, palcos móveis e múltiplas datas em uma mesma cidade. Esse tipo de espetáculo eleva significativamente o custo de cada apresentação. Por isso, muitas produtoras optam por trazer versões mais 'enxutas' dessas turnês ao Brasil, numa tentativa de equilibrar os custos e tornar o evento viável financeiramente.

  • Área VIP

A propagação de setores “premium”, “VIP”, “camarote gold” e afins transforma parte da plateia em produtos exclusivos — e com preços muito mais altos.

  • Nova lógica de consumo

O entretenimento se tornou prioridade para muitos — especialmente entre os jovens. Mesmo diante de dívidas, há quem prefira investir em 'experiências únicas' do que em bens materiais. Esse comportamento envia um sinal claro ao mercado: é possível cobrar mais, porque as pessoas continuarão pagando — ainda que em parcelas, mesmo que com sacrifícios. E assim, o que antes era celebração coletiva, hoje se transforma em privilégio. Um luxo vivido a prestações.

  • Artistas não ganham tanto com música gravada 

Com o avanço do streaming, a receita obtida com a venda de álbuns e singles despencou. Para muitos artistas — especialmente aqueles sem um catálogo antigo de sucessos — o palco se tornou a principal fonte de renda. Isso aumenta a pressão para que as turnês sejam altamente lucrativas, o que, inevitavelmente, recai sobre o preço dos ingressos.

Em média, os artistas ficam com apenas 12% a 20% da receita de um ingresso, segundo levantamento da Rolling Stone EUA. O restante vai para produção, promotores, taxas e plataformas.

  • Shows são culturas e não um serviço de luxo

Nos Estados Unidos, o fenômeno conhecido como funflation descreve o aumento expressivo nos preços do entretenimento ao vivo — como shows, eventos esportivos e parques de diversões. Uma pesquisa do The Wall Street Journal, em parceria com a Credit Karma, revelou que 60% dos entrevistados precisaram cortar gastos com esse tipo de evento devido aos preços elevados.

Por trás das cifras e das estratégias de venda, existe algo mais profundo em jogo: a música ao vivo é, antes de tudo, uma experiência coletiva. Um show não é apenas um espetáculo — é espaço de encontro, pertencimento e celebração. Quando o acesso passa a ser filtrado por barreiras econômicas, o risco é claro: transformar cultura em privilégio.

Diante desse cenário, fica a pergunta que ecoa entre fãs, produtores e artistas: até que ponto vale pagar — ou se endividar — por esses momentos? E, mais importante ainda: como garantir que a música continue sendo para todos, e não apenas para quem pode pagar por ela?

 

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